No Dia do Folclore, saiba tradições e crenças populares envolvendo cães

Lívia Marra

O Dia do Folclore é comemorado neste sábado (22) e tem o Saci como uma das figuras mais conhecidas no país. Cães, companheiros do homem ao longo dos tempos, também são lembrados em tradições e crenças populares?

Para marcar a data, o blog convidou o jornalista e pesquisador Andriolli Costa para escrever sobre o assunto.

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Folclore canino

Neste 22 de agosto, recuperamos algumas tradições e crenças populares ligadas ao melhor amigo do homem

A noite corre avançada quando seu cachorrinho começa a latir. Latido estridente, monotônico, incessante. Não se ouvem carros na rua nem movimento suspeito algum, mas o animal continua a ladrar para alguma coisa invisível. E tudo isso indiferente aos pedidos de silêncio. Quase acostumado com a ladainha, já praticamente um ruído branco na sua mente, você está prestes a embalar novamente em direção ao mundo dos sonhos quando o som muda. O latido se torna um choro, um ganido agoniado. Corre, marido! Levanta, mulher! Acuda, menino! Mas não é nada. Não tem causa, não tem bicho e nem mordida. Só resta uma explicação para essa dor fantasma e é a mesma que meu pai me dava nos tempos de garoto:

— Isso é coisa de Saci.

Presente no Brasil inteiro, nas mais variadas formas, feições e sobrenomes, o Saci —seja ou não o Pererê— lá na minha terra, o Mato Grosso do Sul, tem fama de dar surra em cachorro de pátio. Barbosa Rodrigues, no começo do século 20, colheu histórias parecidas em Pernambuco, onde o algoz da cachorrada era outro: o Caipora. Essa é uma história que, admito, aprendi a evitar durante as sessões de contação de história. Bater em cachorrinho é maldade demais, e as crianças não costumam perdoar os encantados do folclore brasileiro por cruzarem essa linha com os bichinhos. Mas há de se compreender: para os encantados, foi o cachorro quem provocou.

A relação entre o melhor amigo do homem e o essencialmente invisível aos olhos não é de hoje e muito menos se restringe à cultura popular de nosso país. Em seu dicionário de símbolos, Chevalier e Gheerbrant —com os perigos de qualquer universalização-– sugerem que não há nenhuma mitologia em que o cachorro não esteja ligado de alguma maneira à morte e aos domínios do invisível, seja guiando os espíritos para o outro mundo seja caminhando ao lado dos deuses psicopompos.

Na Grécia antiga eram eles os animais símbolo da deusa feiticeira Hécate, acompanhando-a nas encruzilhadas. Dizia-se, já nessa época, que os cães eram capazes de perceber a aproximação de almas de outro mundo e anunciavam sua presença com seus uivos. Se essa crença em uma percepção extra-sensorial dos animais hoje foi dessacralizada, ainda mobiliza o imaginário de muita gente. Já viu aquele quinto dedo nas patas dianteiras do animal, que nem chega a tocar o chão? Dependendo do lugar ele é chamado de esporão ou pesunho. E sua presença, na cultura popular, indica que o cachorro é capaz de perceber e perseguir lobisomens. Coisa rara.

No folclore brasileiro, o cachorro faz valer sua fama de protetor e companheiro mesmo diante do intangível. Câmara Cascudo, o grande mestre do estudo dos saberes tradicionais, anota que a pessoa que sofre de pesadelos, para garantir uma boa noite de sono, deve dormir com o cachorro embaixo da cama. Além de acuar a sacizada, despertando sua ira, o cachorro também não treme nem diante de um inimigo ainda mais notório. É que dizem que quando o animal está correndo em desatino pela casa: você pode até não saber, mas ele está, na verdade, botando “o Tal” para correr. Sim, ele mesmo: o Pé de Bode, o Djanho ou, como também o apelidam, o Cão.

Cascudo praticamente não encontrou na literatura clássica referências ao uso do animal como sinônimo de Coisa Ruim. Em um longo percurso, percebe que nas fábulas e peças gregas os cachorros não eram reconhecidos pelas características que ainda hoje atribuímos a eles, como a fidelidade e o companheirismo. Estas viriam a se fortalecer a partir da Idade Média. Na época, simbolizavam a glutonice e entrega aos instintos.

No entanto, identifica na Ilha dos Açores um uso tradicional da alcunha Cão Tinhoso para se referir ao Chifrudo. Por certo que recebemos muitos imigrantes açorianos por aqui, mas seria o suficiente dizer que veio da ilha esse costume tão corrente Brasil afora? Difícil saber. Como sempre, ao tratar de culturas orais, não é possível cravar uma origem à ferro e fogo. Ficamos com esta noção.

Fato é que ainda usamos muito o bicho como sinônimo de feiura. Se não em comparação direta com o Dito Cujo, invocamos com frequência o “cão chupando manga” como avatar da fealdade. Diga-se de passagem, uma injustiça. Todo aquele que já viu um cãozinho se deliciar esganadamente com um caroço dessa fruta sabe reconhecer a beleza peculiar do momento.

Com tudo o que foi exposto aqui, peço que não se preocupe. Caso um dia você se encontre em um mato sem cachorro (sem nem mesmo um gato para caçar no lugar dele), e se depare com o Cramunhão em pessoa, fique tranquilo. Ele é daqueles que muito ladra e nunca morde. Na pior das hipóteses, sempre dá para ganhar na base da garganta e matar cachorro a grito. O brasileiro é mestre nessas cachorradas.

Andriolli Costa é jornalista, pesquisador e autor do livro “O Colecionador de Sacis e outros contos folclóricos” (2020)

(Imagem: Adobe Stock)

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